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Maladaptive Daydreaming: os malefícios do devaneio excessivo

Sonhar acordado é um hábito que mais de 90% da população tem. Esse hábito pode ajudar as pessoas a planejarem seu futuro, perceberem as coisas que desejam ou até mesmo chegar a solução para alguns problemas do seu cotidiano.

Contudo, em alguns casos, o hábito de sonhar acordado pode se tornar excessivo, deixando de ser uma ajuda para virar um verdadeiro problema. É o chamado maldaptive daydreaming, condição na qual a pessoa fantasia de maneira excessiva e acaba deixando de lado tarefas básicas do dia-a-dia e suas próprias necessidades sociais.

É como se fosse uma compulsão por sonhar acordado, ou até mesmo um vício. Frequentemente, algumas coisas servem de gatilho para a compulsão de sonhar acordado, como certas músicas, sentimentos de ansiedade, entre outros.

Nestes casos, a pessoa chega a passar horas de seu dia “perdida” no seu mundo de fantasia. Essas fantasias podem ter personagens próprios, ou podem ser pessoas da vida real que a pessoa coloca em seu mundo de fantasia. Também podem ser recriações de filmes ou livros que a pessoa assistiu ou leu, ou também recriação de alguns acontecimentos relevantes de sua própria vida.

Em geral, o personagem principal das fantasias é uma versão ideal de si mesmo, mas pode ser outra pessoa idealizada. Alguns temas recorrentes nestas fantasias são violência, controle, poder, entre outros.

Em português, o fenômeno é referido pelo nome “devaneio excessivo”. Contudo, não se trata de um transtorno reconhecido oficialmente — não consta nos registros da Organização Mundial da Saúde, nem no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).

Há quem acredite que o devaneio excessivo seria um transtorno mental em si, mas há também evidências de que ele poderia ser um sintoma atípico de outros transtornos subjacentes.

O termo em inglês foi cunhado por Eli Somers, professor de psicologia clínica na Universidade de Haifa (Israel) e principal pesquisador da condição.

Apesar de ser um fenômeno descrito recentemente, Freud, pai da psicanálise, já havia falado sobre a possibilidade de pessoas usarem a fantasia como um mecanismo de defesa para solucionar conflitos internos inconscientes.

Pesquisas mais recentes parecem contribuir com essa explicação, tendo em vista que grande parte dos participantes relataram que a compulsão por sonhos acordados poderia ser uma maneira de escapar do estresse e dos infortúnios do dia-a-dia.

O problema geralmente tem início na infância, mas pode surgir mais tarde também.

Apesar de parecer, o devaneio excessivo não é um transtorno psicótico, pois não apresenta a principal característica da psicose: a perda de contato com a realidade.

Embora haja uma compulsão por sonhar acordado e “viver em um mundo de fantasias”, a pessoa que sofre com este problema ainda tem noção do que é real e do que é coisa que ela mesma fantasiou, o que demonstra que seu juízo não foi afetado.

Quais são as causas do devaneio excessivo?

Não se sabe exatamente o que causa o devaneio excessivo. No entanto, sabe-se que ele aparece frequentemente em conjunto com alguns transtornos mentais bem conhecidos, como:

  • Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH);
  • Depressão;
  • Transtorno bipolar;
  • Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).

Por conta disso, há suspeitas de que o devaneio excessivo poderia ser um sintoma atípico destes transtornos. No entanto, mais pesquisas a respeito disso precisam ser feitas — tanto para descobrir se é mesmo um sintoma atípico ou se poderia até mesmo ser oficializado como um diagnóstico em uma próxima versão do DSM.

De acordo com as pesquisas de Somer, grande parte das pessoas que sofrem com esse sonhar acordado compulsivo também tem um histórico de traumas e abusos na infância, porém mais pesquisas sobre isso precisam ser feitas para chegar a dados conclusivos.

Sintomas

  • Uma vontade irresistível de sonhar acordado;
  • Sonhar acordado por períodos de tempo longos, desde vários minutos até horas;
  • Devaneios extremamente vívidos, com personagens, lugares, eventos detalhados;
  • O ato de sonhar acordado pode ser engatilhado por eventos reais;
  • Ter movimentos repetitivos enquanto está sonhando acordado, como ficar andando em círculos, balançar de um lado para o outro, tacar uma bolinha para o alto, entre outros;
  • Fazer expressões faciais enquanto sonha acordado, sem perceber;
  • Sussurrar ou até mesmo falar durante os devaneios;
  • Dificuldade para completar as tarefas do dia-a-dia;
  • Dificuldade para dormir à noite.

Diagnóstico

Não existe um diagnóstico de um transtorno específico de devaneio excessivo. No entanto, existe uma escala desenvolvida por Somer, chamada Maladaptive Daydreaming Scale (MDS), que pode identificar se uma pessoa está apresentando um padrão de devaneio excessivo ou não.

A escala é composta de 14 partes e avalia as 5 principais características do devaneio excessivo:

  • O conteúdo e a qualidade (no sentido de detalhes) do devaneio;
  • A capacidade que o indivíduo tem de controlar a compulsão por sonhar acordado;
  • A quantidade de sofrimento causado pelo excesso de devaneios;
  • Os benefícios do devaneio percebidos pela pessoa;
  • O quanto sonhar acordado acaba prejudicando a pessoa em suas atividades no dia-a-dia.

Existe tratamento?

Por não ser um transtorno oficialmente reconhecido, não existe um protocolo de tratamento específico para o devaneio excessivo.

Contudo, um estudo publicado no periódico científico Consciousness and Cognition, em 2009, mostrou que um medicamento comumente usado para tratar o transtorno obsessivo-compulsivo pode auxiliar na diminuição da compulsão por sonhar acordado.

Por ter uma grande relação com alguns transtornos mentais bem conhecidos, como o TDAH, o TOC e a depressão, existe uma chance de que, tratando estes problemas, é possível tratar o devaneio excessivo também. Portanto, o uso de antidepressivos e ansiolíticos deve ser investigado para confirmar sua eficácia.

Psicoterapia

Já quando se trata de psicoterapia, é possível tratar o devaneio excessivo por meio de terapia cognitivo-comportamental ou da análise do comportamento.

Em inglês, o transtorno tem o nome de “maladaptive daydreaming”, que significa “sonhar acordado mal adaptativo”. O termo “mal adaptativo” se refere a comportamentos que são usados de forma inadequada ou em situações inadequadas.

Não necessariamente são comportamentos ruins ou errados, mas não foram “bem adaptados” aos contextos em que a pessoa vive.

Essas duas opções de psicoterapia podem auxiliar a combater esses comportamentos mal adaptativos, aumentando o repertório comportamental de uma pessoa.

Por exemplo, se a pessoa percebe que um gatilho para a compulsão por sonhar acordado são sentimentos de ansiedade, então o psicoterapeuta irá ajudar o paciente a desenvolver outras formas de lidar com estes sentimentos, que não seja o devaneio excessivo.

Aos poucos, o paciente vai aumentando seu leque comportamental, ou seja, vai aprendendo novas maneiras de lidar com os gatilhos, e vai deixando a compulsão de lado. Isso não significa que o paciente nunca mais irá sonhar acordado, mas ao menos não irá mais perder tanto tempo de seu dia-a-dia com esta compulsão.

Como combater a compulsão

Lidar com uma compulsão pode ser bem complicado, mas, no caso do devaneio excessivo, existem algumas coisas que podem ajudar. São elas:

Evitar gatilhos

Nem todos os gatilhos são evitáveis, mas alguns são. Muitas vezes, a compulsão é desencadeada por certas músicas, séries, filmes ou até mesmo livros. Evitar consumir estas mídias em dias nos quais há tarefas a serem feitas pode ajudar a diminuir o tempo gasto em devaneios.

Não se trata de deixar de consumir tais mídias, até porque muitas vezes podem ser as músicas/séries/mídias favoritas de uma pessoa. Contudo, diminuir a exposição a elas durante momentos nos quais a pessoa tem tarefas a concluir ou não está livre para fazer o que quiser ajuda a combater os prejuízos de sonhar acordado por tanto tempo.

Registrar os devaneios

Alguns devaneios podem ser repetidos e, possivelmente, eles se repetem por causa de algum conflito interno não resolvido. Registrar esses devaneios pode ajudar a pessoa a tomar consciência do problema, ou, ao menos, “colocá-lo para fora”.

Desta forma, é possível evitar a repetição de devaneios, o que pode diminuir a quantidade de tempo gasta em devaneios excessivos.

Evitar tarefas monótonas

Às vezes, as tarefas monótonas também podem servir de gatilho para os sonhos acordados. Isso porque, nessas tarefas, a pessoa não precisa se esforçar muito, o que pode deixá-la desestimulada.

Algumas pessoas começam a ter sonhos acordados quando estão dobrando roupa ou lavando a louça, por exemplo. Embora isso não seja necessariamente ruim, vai depender do quanto o devaneio atrapalha na tarefa sendo executada.

Se, por acaso, a pessoa começa a fazer a tarefa mais devagar por estar sonhando acordada, pode-se considerar que o devaneio está atrapalhando na realização da tarefa. Ou se o devaneio acabar distraindo a pessoa a ponto de colocá-la em algum tipo de perigo, como o perigo de quebrar louças enquanto as lava por falta de atenção.

Fazer pausas

Se, por algum motivo, você não pode escapar das tarefas monótonas (como lavar louças ou dobrar roupas), outra maneira de evitar sonhar acordado ao fazê-las é fazer pausas.

Essas pausas devem ser curtas, para que não aumentem consideravelmente o tempo de conclusão das tarefas, mas elas devem envolver alguma atividade não monótona que faça com que a pessoa evite de sonhar acordada.

Porém, essa dica pode não valer para todas as pessoas, pois algumas pessoas podem ter dificuldade de voltar a fazer o que estavam fazendo antes da pausa — como é o caso de algumas pessoas com TDAH, por exemplo.

Redes de apoio

Apesar de não ser um problema oficialmente reconhecido, existem redes de apoio para pessoas que sofrem de devaneios excessivos.

Por exemplo, o site Wild Minds (https://wildminds.ning.com/) é uma rede na qual pessoas que sofrem com o maladaptive daydreaming podem trocar dicas e experiências e compartilhar a dor de ter uma condição limitante não reconhecida.


Sonhar acordado pode ser bom, mas em demasia pode trazer prejuízos. Se você se reconheceu em algum dos sintomas, não hesite em procurar ajuda com um profissional da saúde mental!

Referências

https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19062309/

https://www.healthline.com/health/mental-health/maladaptive-daydreaming

https://observador.pt/2015/07/27/viciados-em-sonhos-um-disturbio-pouco-conhecido/

https://wildminds.ning.com/

https://digest.bps.org.uk/2018/06/25/people-with-maladaptive-daydreaming-spend-an-average-of-four-hours-a-day-lost-in-their-imagination/



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